A mulher na sacada

Tabata Clarissa de Morais
2 min readJun 11, 2021

--

Esperou sua chegada. Estranhamente esperou sua chegada. Conhecia-o há anos e nunca tinha esperado por nada dele: um olhar, uma palavra, muito menos a projeção romântica. Mas agora resolvera esperá-lo, arbitrariamente, livre de nexos e contextos — apenas o elegera. E que coisa doida, ela pensava, que assim, à revelia, entregara sua paixão, seu tesão, os toques ardentes e uma ou outra noite mal dormida. E esperou sua chegada. Nem nunca havia lhe dado nada. Talvez alguns sorrisos, cumprimentos com cortesia. Ademais isso, era um desconhecido. Um vizinho do bairro, figura figurante que encontrava na padaria. Bom dia. Nos últimos meses, a empreitada. E tudo bem envolvente. As febres lascivas. Os suores, afagos, seu cheiro, seu sexo, o beijo lento, o olhar atento, longamente atento — mais que um trago, um abraço. A mulher estava na sacada. E esperava sua chegada. Viria? À noite ele lhe falara que sua fronte estava quente. Em tempos de pandemia, melhor ficar em casa e observar as febres, que não passavam, pela manhã ou pela noite, pela manhã ou pela noite, pela manhã… Na sacada, ela tomava ar, preenchia breve seus pulmões com a respiração curta. Assim, ele vinha em pensamento, sempre em pensamento cada vez que lhe faltava o ar. Seja o que for. São coisas da tensão. Puxava mais fundo, interrompida. Na calçada movimentada, um homem passou tossindo. Com receio, fechou a janela e entrou novamente na casa. Ela esperava. Ele não ligava, não lhe dizia, não testava — com o quê se importava? Seu corpo ardia, a cabeça explodia. Onde estava o dever cívico que ele lhe teorizara com sua moral de porta-voz da OMS? Quem disse que as contradições são belas? Terra sem pão e as febres do seu corpo persistem em fogo. A mulher abriu novamente as portas da sacada e observou com maior atenção os transeuntes.

--

--