Antoninho

Tabata Clarissa de Morais
3 min readJul 2, 2021

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Batinha andava com aquelas ideias de falar das meninas, das meninas. Que meninas eram aquelas? Em que lhe ajudavam? Eu estava ali ao seu lado. Tinha visto seus dias, segurei sua mão quando se enviuovou. Lhe levava as compras. Talvez não tanto quando Nair. Mas essas coisas de cuidado são para mulheres, mesmo. Então por que pensar tanto nessas meninas? E agora aqui. Seu rosto tão pálido. Toquei para que ficasse algo dela em mim, no meu tato. Mas me contive. A lembrança do toque era só o que ela tinha para mim depois de tantos anos? O cheiro lhe subia com o rosto sério como sempre, sua dureza de sempre. Sua objetividade, seu certo e errado, seu moralismo beato a me fazer críticas repetidas com tudo: o meu bar, minha sina, a bebida, meu filho ido, fugido — outro que a vida leve. A rigidez dela me dava nos nervos. E no final, onde estão as tais meninas? Nair chorava minguado, tinha vergonha, mas que porra de vergonha se era a morte de sua tão amiga? Todos aqui que faziam? Vestiam preto e diziam: uma grande mulher, muito boa, muito generosa. E então é isso que fica. E que dirão no meu enterro? Às favas com o que dirão. Mas chegavam as tais meninas. Assim tão insossas e indolentes, sempre sem direitos: cresceram assim e assim permaneceriam. Me meti no corredor dos ossuários. Para chorar? E me encostei no muro, andando minguado para não ser visto saindo, nem tinha a quem dar satisfações. Eles que a enterrassem e ficassem com esse chorinho preso e sem graça. Eu não me rendo assim fácil. Fui à casa de Batinha e guardei comigo o inventário — se não eu, ninguém. Peguei também seus colares, anéis… É tanto brilho que ela ainda tinha após décadas. Era mão de vaca, a velha. Muquirana. E ainda tinha bons brincos. Tudo isso servia. Mas se a casa não era minha, para aquelas fedelhas que não ficariam. Vi a leica, em que a gente se fotografou quando foi para João Pessoa. Será que ela ainda tinha as fotos? Abri o álbum ao passar das folhas, lembrei que era a cidade mais ao oriente da América. Eu disse isso pra ela: nesses dias vemos o sol nascer primeiro que o resto do continente. E a gente acordava cedo mesmo e o sol vinha suave na pele, o que era bom que já somos velhos há tanto tempo. Esta outra foto nas acácias… Batinha gostava e tanto que esse pé aí na frente não deixasse negar — que em seguida secaria como tantas outras vidas da casa. Ouvi um som de carro e joguei tudo na sua bolsa de couro já sem cheiro pelos anos. As sobrinhas mais velhas nem no Recife moravam e já queriam também sua parte, aves de rapina se bicassem à vontade, que as joias já eram minhas. Já às meninas, aquelas fedelhas, não sobraria nada. Velho agachado é mais difícil e deitei, rastejando para fora da casa. Dei partida no carro e elas que gritassem atrás de mim. Batinha não está nessas coisas, eu sei, que um morto não fica preso aos seus objetos. E alma é uma invenção para a gente ter uns cuidados, mas, na verdade a gente quer é que vão para o nosso enterro e chorem nossa saudade. Tudo termina com a respiração. Por isso que naquelas horas eu nem existi e só voltei a respirar quando cheguei na Bahia, quando tudo já era outra coisa.

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