Dentro do labirinto

Tabata Clarissa de Morais
4 min readSep 20, 2020

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Acorda, mulher. Olha que te cutuco com o pé! O que ela está fazendo aí? Acorda. Não consigo levantar ela. Pegar essa cadeira aqui. Mas isso é lugar de deitar, e logo aqui no caminho? Carmem! Acorda, mulher. Ah, essa dorzinha que sobe por aqui. Mas Carmem está no chão. Só puxando mesmo. É pesada. Ô, Carmem, você tá muito grande pra brincadeirinha, pra quê ficar no chão? Essa água aqui. Não acorda. E se não for brincadeirinha? Ai, meu Deus, nosso senhor, proteja essa casa, proteja Carmem. O que eu faço? Vou ligar para alguém. Alí o telefone. Tá. E agora? Como Carmem foi parar ali, minha nossa senhora? Sim, eu tenho que ligar. Tá. Pra quem? Tereza, né, o nome dela. E eu sei o número de Tereza? Sempre quem liga é ela, ou Carmem. Quer dizer, nem liga tanto assim. Quando liga. Não quero falar com essa desgraçada. Ah, Carmem. Ai, meu Deus. Tu tinha que ir pro chão, Carmem? Precisa de médico? Aí piorou, pra onde eu ligo? Não consigo. Ajuda, preciso de ajuda. Deve ter alguém na rua. Você viu a chave, Carmem? Ah. Tem que pôr a máscara, com esses besourinhos aí fora. Pelas alcinhas para não pegar no tecido. E a chave está aqui. Vamos, Carmem. Ah, meu Deus do céu, Carmem abençoada, como você foi parar aí no chão. Socorro?! Parece que não mora ninguém nessa casa. E nessa outra? Oooi. Ninguém. Tenho que me apressar, não posso esquecer de Carmem. Agosto tem um vento tão bom. Pipipi. O passarinho está gostando. Hahaha passarinho bonito gostando do ventinho. Olha, tem um moço alí na rua, vou falar com ele para ajudar. Ajudar Carmem. Moço, moço, por favor. Oi, dona Eulália, bom dia. Oi, meu filho, bonito esse jovem. Meu filho, você pode, que cachorrinho impertinente. Para, cãozinho bonzinho, para. Moço, você podia… Shhh… A senhora está precisando de algo, dona Eulália? Você podia mandar a merda do seu cachorro calar essa maldita boca? Dona Eulália… Ah, sai de perto de mim, menino, que cachorro chato da gota. Latidinho agudo. Esses cachorros pequenos de latidinho agudo. Pra puta que o pariu. Ai, ainda bem, pra longe de mim com esse cachorro. Bonitinho mas ordinário. Eu morro e a prefeitura não calça essa rua. Uma menina, menina é mais inteligente. Oooi. Oi, Dona Eulália, bom dia. Bom dia. Tá na rua sozinha, cadê Carmem? Carmem foi na padaria comprar canjica, você sabia que na padaria da Pinheiros tem uma canjica muito boa? Sei, e uma coxinha também, eu tô indo pra lá agora comprar uma coxinha e pão francês. No café da manhã, menina, não é hora de comer coxinha. Se a senhora diz, vou comprar só o pão. Mentirosa, esses jovens não sabem se alimentar, ó pra isso, a cara cheia de espinha, tá, menina, bom dia, tchau. Faz tanto tempo que eu não saía, quem ia gostar daqui era meu pai. Ele gostava de pássaro, a gente dava farelo pros pombos no parque. Um dia ele prendeu aquele pássaro, periquito, cotovia… que nomes bonitos. E tinha o louro com a asinha cortadinha pra não voar. Uma graça. Ele repetia tudinho que a gente dizia. Que a gente dizia. Parecia uma criança. Uma criança. Ein? Ein? Tem alguém me remendando? Tem alguém me remendando? Oi, vó! Que susto, menino, surgindo assim, sem avisar, e parecendo um papagaio. Tua mãe não te deu educação, não? Não, ela morreu, vó, eu moro com meu pai. Ô, pobrezinho, sinto muito, agora vai pra casa, vai. Você está sem máscara? Não pode ficar na rua sem máscara, menino, senão vai encontrar a mamãe, que o diabo te carregue, assintomático… A senhora é engraçada. Tá me achando com cara de palhaça, menino impertinente, pequeno demônio. Hahaha. Quê, olha que você merece, te dou um cocorote. Ai, vó, não faz isso. Não me aperreia. Tá bom, vó, vamos pra sua casa. Pra minha casa, o que você quer na minha casa? Quero que a senhora descanse que tá muito aperreada, vó, aconteceu alguma coisa? Ah, meu filho, aconteceu tanta coisa, mas tanta coisa, os pássaros daqui são iguais ao do meu pai, quer dizer, aos de lá de casa, da casa do meu pai. Me dá a mão da senhora, vamos lá que eu quero conhecer o pássaro do seu pai, a senhora mora com ele? Sim, e com Carmem. Então a senhora me mostra, vó, eu cubro meu rosto com a camisa, faz de conta que é máscara. Carmem. Que tem? Menino, Carmem tá no chão. No chão, vó? No chão, foi pro chão e ficou. Com calor? Não, não, acho que caiu, meu Deus, Carmem caiu, é verdade, menino, vai chamar tua mãe pra ajudar, Carmem tá no chão. Vou sim, vó, primeiro eu vou levar a senhora pra casa, depois eu chamo meu pai, minha mãe, o médico, todo mundo, vamos ver Carmem. Menino, vamos logo, olha aqui está a chave, abra, por favor. Tá, estava aberto. E você quer entrar na minha casa por quê? Pra ver Dona Carmem, vó. Mmm, vou chamar ela, espera aqui fora… Ela está no chão, menino. Posso ver? Eita, vó. Vou chamar meu pai. Fica aqui, fica aqui, vó.

A imagem é de Jacquot de Nantes, de Agnès Varda.

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