Tabata Clarissa de Morais
2 min readJul 18, 2021

o relógio corria no negativo num dia comum de filmagem, em uma semana inteira de sinceras quinze horas de diária de algum filme cansado, se arrastando, e ela sorria enquanto executava múltiplas funções assim instrumental e operante uma profissional de exatidão técnica, com as próximas diárias reconhecidamente planejadas e divulgadas em pdf e tão repetidamente esboçadas no excel, e então ela voltava ao set, e marcava a figuração atenta ao videoassist a pensar que composição depende do referencial com que se trabalha e é uma ciência de muitas probabilidades, ainda assim observava pele, cabelo, ritmo, entrada, começa aqui, três passos antes, meu amor, e confirmando no rádio o ok, após o segundo take podia preparar a próxima cena e a arte estava de fato montada, exceto pelos bancos de bar que foram retirados numa lanchonete descolada da zona norte, de uma parceira da prima de produtora de objetos, mas não chegara antes porque a kombi bateu em um ônibus, e corria-se, e ela corria para o camarim e Nara tinha o rosto maquiado e já terminava o cabelo e onde estava Márcio que era para estar pronto e vestido? e não estava na maquiagem, no figurino, no banheiro, no catering em seu milésimo copo de café? e dizia-se que ele tinha saído e mais isso? e pra onde não sabia, mas avançava pelo quarteirão quando os bancos chegaram em um uber e um táxi, e Márcio não, e ela avançava sem norte, e lá estava ele no boteco sentado com a roupa de cena. Ela hesitou. Ele meditava diante de seu açaí. Ela sentou-se ao seu lado. O açaí já imerso em uma calda. Estava demorando. Ela tentou controlar que estivesse ofegante. Não sou criança, Isa. Ela esboçou tocar-lhe. Você já poderia ter acabado com isso. Desistiu. No entanto ainda estamos aqui. Encolheu-se incrédula entreolhando-o. E há esse monte de gente a impregnar nossa história, você me sufoca com suas multidões. Márcio tomou nota no roteiro. Você me sufoca com suas multidões e com esta sua astúcia, sua tão recorrente pressa. Ela refez seu coque em seus longos cabelos, calma … parece que me toma como um filho seu, ou um inábil. Pôde ver em seus olhos como ele buscava esconder E talvez eu seja mesmo e talvez tudo bem, mas isso você não tem como saber do lugar de onde está. Acenou ao garçom. Sou eu. Gesticulou o pedido da conta enquanto olhava seus trocos na cartucheira. Márcio desmontou o olhar ressentido e sorriu para ela. O que acha desse tom? Pode estar um tom acima de solene. Por quê? … Porque ele quer que ela lhe peça que fique, não é uma despedida. Mas algo nele vai embora aqui. Vai, mas não a esperança. E com esta sua astúcia, sua tão recorrente pressa, parece que me toma como um filho seu, ou um inábil — e assim? Parece mais adequado… Olha, Nara está pronta no camarim. E os bancos? Chegaram também. Márcio beijou-lhe a mão. Então vamos.